terça-feira, 5 de janeiro de 2010
As mãos naufragadas | Beatriz Hierro Lopes
As mãos naufragadas | Beatriz Hierro Lopes
Vendia luvas na rua. Cachecóis, quando havia tempo para os tricotar. Vendia calor para um Natal que se imaginava quente. Catarina, à espera do autocarro, ouvia-a: dizia, que gostava de esperar, que a espera a resguardava da chuva, protegendo as luvas e os cachecóis por vender. Tinha um nome e um sorriso, a mulher que todos os dias esperava. Fazia-o de pé. Vestida de negro, a pele e os olhos claros fundiam-se na sombra. Sem se saber onde ela terminava e a sua viuvez começava.
Vendo chegar o autocarro, levava aos bolsos as mãos naufragadas, em busca de consolo. Vazios, faziam-na sentir o corpo pesado. A alma pesada, dizia, ao abrir as palavras para que delas saísse luz. A filha mais velha (que não tricotava) faria anos daí a dois dias. Queria uma viola. Uma viola azul para cantar à noite. Mas naquele Inverno ninguém parara na rua para comprar calor à viúva.
Sentada no autocarro, num banco frio, contava histórias – de meninices antigas – embalando com o olhar uma tristeza doce. A casa onde vivia seria vendida: haveria sempre violas para dar às filhas. O marido, que morrera de imprevisto, nunca era tocado. Também ele tivera nome mas, pela boca da viúva, era tão-somente conhecido como o morto. O seu morto. Aquele que enterrara no quintal da sua casa, junto ao limoeiro.
Custava-lhe vender a casa: dizia-o, com pesar. Até os mortos se vendem.
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